desenho de Adriano Lobão Aragão
- Publicado originalmente em amálgama #4, agosto de 2003.
Realismo fenomenológico e função épica na poesia de H. Dobal
por Ranieri Ribas
“E tanto nascendo
contra os dias secos
se faz desflorida
a raça comum
Como fogo dormido
se faz a semente
que gerou esta raça
sem foro de ódio
de igual para igual”
(A Raça)
Uma literatura entalada no gargalo mallarmaico, em uma província refratária à modernidade, seja como manifestação culturmorfológica ou político-social. Uma república onde a meritocracia, banida pela politização de todas as relações sociais, inexiste, e cujos literatos acumulam capital social (supostamente intelectual) a fim de angariar um semicúpio na academia ou usar o prestígio para arrebanhar um séqüito de fiéis, ou ainda, conduzir uma política editorial que nomeie seus eleitos e os consolide no sistema literário[1] . O sufrágio aqui não é mercantil porque não há público suficiente para tanto. O sufrágio é editorial e se vale do capital afetivo e da visibilidade nos veículos de consagração canônica a que cada literato lança mão, seja pela adulação ou pela amizade. A Esfera Pública conceituada por Habermas[2] , por estas plagas não atingiu sua fundamental característica, a polêmica, porque permanece ainda como estética de corte. Sabe-se, a política literária, nestas paragens, sempre sobrepujou o mérito.O discurso daqueles que regozijam celebridade alterna-se de uma marginalidade-institucional (subsidiada por editora padrão, e aclamada pela Esfera Pública em todos os seus canais: emissoras de TV, jornais locais, revistas literárias, universidades, vestibulares, etc.) até uma retórica mútuo-elogiosa que arrenega a polêmica intelectual (indissociável das questões pessoais) e prefere a hipocrisia. A institucionalização política da literatura se evidencia na baixa qualidade dos textos que povoam o leitor médio, incapaz de sustentar um juízo fundamentado da cousa oferta.
H. Dobal contrariou a regra. Não se prestou ao tráfico de influência ou à autopromoção. Ateve-se à poesia. Fê-la como nenhum outro conterrâneo, e tirou ouro do nariz para a política literária. Na qualidade de poeta visceral da terra esperava-se uma retribuição analítica dos literatos paisanos. Contudo, a incongruência poética daquilo que apresentara em relação ao hélas prevalecente desencadeou uma ruptura tal que emudeceu a crítica local, anacronicamente instrumentalizada, e portanto incapacitada para inferir-lhe a extensão.A assimetria entre fortuna crítica (seria mais apropriado denominarmos paupérie crítica) e a magnitude da poética dobalina é um sintoma do caráter pré-moderno e retardatário prevalecentes na literatura piauiense. O salto qualitativo empreendido por Hindemburgo em O Tempo Conseqüente sucedeu semi-incólume desde sua primeira publicação; pouco se produziu para compreender o arcabouço poético e metodológico de sua obra. Não bastasse a escassez, faculta-nos ainda a pobreza analítica e o elogio oco do pouco produzido, impondo à criatividade textual do autor um certo reducionismo hermenêutico.
Entre os intérpretes prevalecem rotulações quixotescas e reducionistas. A primeira e mais recorrente — o poeta telúrico — fornece-nos uma informação imprecisa porque incapaz de distinguir a estética dobalina das demais igualmente telúricas. O poeta lírico-elegíaco, segundo o discurso institucional, está encerrado numa impressão que pretende impor à leitura de Dobal uma imprecisa continuidade com os cancioneiros da tradição provençal-ibérica. Esta leitura quixotesca indicia a negação do estro dobalino como poesia do tangível e do prosaico em favor do sublime e do inefável que, peremptoriamente inexistem et alii. O hélas ornamental da poética dobalina está subordinado ao vocábulo sujo da realidade fenomênica, chã e ordinária[3] . Por isso refutemos qualquer filiação de cronologia tabelioa[4] que queira inseri-lo no lirismo sermo nobilis do decorum poemático dos herdeiros de 1945. Dobal é deveras a antítese deste ideário porque soube conferir valor poético a termos como sabugem, DNOCS, culhões, BR-22, Coralit, etc., entre miríades que extirpam a nobreza vocabular e indiciam a preferência pela cousa ordinária em detrimento da metafísica. Esta preferência evidencia-se outrossim na escolha temática nitidamente influída por João Cabral de Melo Cabral (leitor de Francis Ponge, assim referido em meu último ensaio, Francis Ponge ou a Fenomenologia do Objeto), tais como “os cortadores de grama”, “a feira de automóveis”, “os seguros de vida”, etc., inclusos no livro “A Província Deserta”.
Outro problema da paupérie crítica está em seu surpreendente naïve em empreender uma leitura temático-conteudística cujo impressionismo é cego aos procedimentos metodológicos da poesia dobalina. A edição publicada em 1986 de O Tempo Conseqüente traz-nos o estudo breve, porém riquíssimo de fragmentos analíticos não desenvolvidos, de Odylo Costa (com destaque para a alusão pongiana ali contida referente ao parti pris des choses dobalino, cuja poesia não se projeta a partir das concepções do objeto mas do objeto em si, fenômeno), e ainda, a insípida tergiversação conteudístico-descritiva de Maria G. Figueiredo dos Reis. Esta última restringe-se a diluir o conteúdo temático do substrato poemático segundo a heurística metodológica do “o-que-o-poeta-está-dizendo-aqui-significa...”, interpelando o texto com elogios ocos e descrições desprovidas de análise. O alvo aproveitável deste texto permaneceu subdesenvolvido, e diz respeito à técnica singular do épico dobalino, uma técnica herotodoxa, característica de toda a experimentação epopéica moderna. Reis não soube prover um argumento que viesse a demonstrar a peculiaridade de tal intenção épica em Dobal, restringindo-se a afirmar, na página vinte e um(21) da referida edição que o poema “Leonardo foge à técnica da epopéia tradicional, guardando do gênero épico o fato de narrar os feitos de um herói, o herói piauiense, Leonardo, na luta pela independência nacional”. Esta afirmação, não obstante, aponta-nos um dos caracteres do épico ortodoxo preservados por Hindemburgo (tendo em vista que o heroísmo como característica épica é uma categoria eminentemente ortodoxa e está invalidado, em Dobal, por sua condição estrutural maniqueísta[5]) sem nos indicar qual aspecto substantivo do gênero foi transgredido.
Subjacente a esta discussão está a bipartição entre a epopéia ortodoxa vs heterodoxa. O gênero épico, enquanto conceituação ortodoxa fora solapado por empresas que impuseram a ductilização dos caracteres de sua definição, sobretudo quanto ao aspecto da linearidade sintática e discursiva. Desde Mallarmé (Igitur e Un Coup de Dés Jamais n’Abolira le Hasard), T.S. Eliot (The Waste Land e The Hollow Men) e Pound (The Cantos), qualificar um poema como epopéia implica em formular uma base conceitual capaz de englobar a envergadura transgressiva destas obras. O argumento acidental de Reis aplicava-se a explicação do lírico em Dobal, ignorando que este mesmo caractere lírico fosse na verdade um requisito épico ortodoxo.
“um aspecto que chama a atenção na arte do poeta piauiense é a técnica de conduzir o pessoal de maneira sempre impessoal, é a presença do eu lírico, disfarçado na terceira pessoa, é o emprego do indefinido pelo definido, do objetivo pelo subjetivo que deixam na poesia a ausente presença do autor. Este recurso nascido em O Tempo Conseqüente, continua em toda a obra de H. Dobal.”
Poderíamos, a partir deste excerto, coadunar o épico dobalino à rígida conceituação de Emil Staiger[6] — Conceitos Fundamentais da Poética — o qual afirma que o narrador épico é um apresentador representante de um ethos; narrador que embora não se imiscua nos acontecimentos, mantendo-se objetivo, distancia-se sem desaparecer atrás da história, ou melhor, sem tornar-se ausente. Ora, segundo Staiger, esta presença ausente, a qual se refere Reis, é característica fundamental do narrador-apresentador épico. E se concordamos que tal presença ausente se espraia por toda a poesia dobalina, então corroboramos a hipótese da função épica fragmentada em faturas líricas, ou melhor, fraturas líricas.
A intuição de Odylo Costa, por outro lado, qualificando ecumênica a poesia dobalina, estava correta porque reconheceu o caráter universal do particularismo cultural ali representado. Ora, a preferência de Dobal pelo mundo ordinário e rústico em consonância com a tradição da cultura de seu povo e seus homens de cada dia, reafirma a tese de que a poesia dobalina tem por substrato e acentuação uma função épica. Digo função porque seria equivocado considerá-la épica enquanto gênero, por uma questão de rigor no uso do conceito. Uma épica que varia seus humores a fim de representar todas as facetas do espírito de um povo, seja pelo drama da escassez em O Tempo Conseqüente, seja pelo testemunho crônico-anedótico dos causos e da gente comum em A Serra das Confusões. Varia o humor, a função épica é constante. A respeito desta predileção pelo ordinário Staiger afirma:
“o homem épico vive exclusivamente a vida de cada dia [...] A epopéia [...] tem seu lugar determinado na história. O poeta aqui não fica sozinho. Está num círculo de ouvintes e lhes conta suas histórias [...] Os ouvintes reconhecem Homero porque este representa as coisas como eles próprios estão acostumados a ver.”
A ala institucional da crítica, por sua vez, abraçou o poeta e fê-lo a seu modo, ainda que sob custo de distorcer-lhe a força antilírica. Para tanto puseram-no sob o jugo de universalismos conceituais omissos à singularidade da literatura brasileira. A poesia nacional há muito adquiriu autonomia e tradição para ser tratada idiograficamente, e não simplesmente estar subsumida no rótulo de poesia portuguesa, como impõe M.Paulo Nunes ao citar Unamuno como referencial teórico para leitura da estética de Dobal. A hipótese da semi-restrição temática (amor/elegia) não confere nenhuma singularidade à poesia dobalina,não a diferencia de modo a torná-la distinguível como manifestação poética de uma cultura, pelo contrário, a reduz a um leque de conceitos alheios à autonomia literária brasileira. Nunes não nos fornece o instrumental necessário e coadunável para o estudo da poesia de Hindemburgo Dobal uma vez que, para a análise específica do caso, usar Unamuno seria uma hipótese ad hoc, ao que Thomas Khun denominou inversão dos papéis epistemológicos: ao invés do teórico reconhecer a demonstrada insuficiência de seu aparato conceitual em relação ao objeto e admitir refutada sua empresa, prefere distorcer a percepção do objeto para que este caiba exato em seu arcabouço.
[continua...]
- Publicado originalmente em amálgama #4, agosto de 2003.
Realismo fenomenológico e função épica na poesia de H. Dobal
por Ranieri Ribas
“E tanto nascendo
contra os dias secos
se faz desflorida
a raça comum
Como fogo dormido
se faz a semente
que gerou esta raça
sem foro de ódio
de igual para igual”
(A Raça)
Uma literatura entalada no gargalo mallarmaico, em uma província refratária à modernidade, seja como manifestação culturmorfológica ou político-social. Uma república onde a meritocracia, banida pela politização de todas as relações sociais, inexiste, e cujos literatos acumulam capital social (supostamente intelectual) a fim de angariar um semicúpio na academia ou usar o prestígio para arrebanhar um séqüito de fiéis, ou ainda, conduzir uma política editorial que nomeie seus eleitos e os consolide no sistema literário[1] . O sufrágio aqui não é mercantil porque não há público suficiente para tanto. O sufrágio é editorial e se vale do capital afetivo e da visibilidade nos veículos de consagração canônica a que cada literato lança mão, seja pela adulação ou pela amizade. A Esfera Pública conceituada por Habermas[2] , por estas plagas não atingiu sua fundamental característica, a polêmica, porque permanece ainda como estética de corte. Sabe-se, a política literária, nestas paragens, sempre sobrepujou o mérito.O discurso daqueles que regozijam celebridade alterna-se de uma marginalidade-institucional (subsidiada por editora padrão, e aclamada pela Esfera Pública em todos os seus canais: emissoras de TV, jornais locais, revistas literárias, universidades, vestibulares, etc.) até uma retórica mútuo-elogiosa que arrenega a polêmica intelectual (indissociável das questões pessoais) e prefere a hipocrisia. A institucionalização política da literatura se evidencia na baixa qualidade dos textos que povoam o leitor médio, incapaz de sustentar um juízo fundamentado da cousa oferta.
H. Dobal contrariou a regra. Não se prestou ao tráfico de influência ou à autopromoção. Ateve-se à poesia. Fê-la como nenhum outro conterrâneo, e tirou ouro do nariz para a política literária. Na qualidade de poeta visceral da terra esperava-se uma retribuição analítica dos literatos paisanos. Contudo, a incongruência poética daquilo que apresentara em relação ao hélas prevalecente desencadeou uma ruptura tal que emudeceu a crítica local, anacronicamente instrumentalizada, e portanto incapacitada para inferir-lhe a extensão.A assimetria entre fortuna crítica (seria mais apropriado denominarmos paupérie crítica) e a magnitude da poética dobalina é um sintoma do caráter pré-moderno e retardatário prevalecentes na literatura piauiense. O salto qualitativo empreendido por Hindemburgo em O Tempo Conseqüente sucedeu semi-incólume desde sua primeira publicação; pouco se produziu para compreender o arcabouço poético e metodológico de sua obra. Não bastasse a escassez, faculta-nos ainda a pobreza analítica e o elogio oco do pouco produzido, impondo à criatividade textual do autor um certo reducionismo hermenêutico.
Entre os intérpretes prevalecem rotulações quixotescas e reducionistas. A primeira e mais recorrente — o poeta telúrico — fornece-nos uma informação imprecisa porque incapaz de distinguir a estética dobalina das demais igualmente telúricas. O poeta lírico-elegíaco, segundo o discurso institucional, está encerrado numa impressão que pretende impor à leitura de Dobal uma imprecisa continuidade com os cancioneiros da tradição provençal-ibérica. Esta leitura quixotesca indicia a negação do estro dobalino como poesia do tangível e do prosaico em favor do sublime e do inefável que, peremptoriamente inexistem et alii. O hélas ornamental da poética dobalina está subordinado ao vocábulo sujo da realidade fenomênica, chã e ordinária[3] . Por isso refutemos qualquer filiação de cronologia tabelioa[4] que queira inseri-lo no lirismo sermo nobilis do decorum poemático dos herdeiros de 1945. Dobal é deveras a antítese deste ideário porque soube conferir valor poético a termos como sabugem, DNOCS, culhões, BR-22, Coralit, etc., entre miríades que extirpam a nobreza vocabular e indiciam a preferência pela cousa ordinária em detrimento da metafísica. Esta preferência evidencia-se outrossim na escolha temática nitidamente influída por João Cabral de Melo Cabral (leitor de Francis Ponge, assim referido em meu último ensaio, Francis Ponge ou a Fenomenologia do Objeto), tais como “os cortadores de grama”, “a feira de automóveis”, “os seguros de vida”, etc., inclusos no livro “A Província Deserta”.
Outro problema da paupérie crítica está em seu surpreendente naïve em empreender uma leitura temático-conteudística cujo impressionismo é cego aos procedimentos metodológicos da poesia dobalina. A edição publicada em 1986 de O Tempo Conseqüente traz-nos o estudo breve, porém riquíssimo de fragmentos analíticos não desenvolvidos, de Odylo Costa (com destaque para a alusão pongiana ali contida referente ao parti pris des choses dobalino, cuja poesia não se projeta a partir das concepções do objeto mas do objeto em si, fenômeno), e ainda, a insípida tergiversação conteudístico-descritiva de Maria G. Figueiredo dos Reis. Esta última restringe-se a diluir o conteúdo temático do substrato poemático segundo a heurística metodológica do “o-que-o-poeta-está-dizendo-aqui-significa...”, interpelando o texto com elogios ocos e descrições desprovidas de análise. O alvo aproveitável deste texto permaneceu subdesenvolvido, e diz respeito à técnica singular do épico dobalino, uma técnica herotodoxa, característica de toda a experimentação epopéica moderna. Reis não soube prover um argumento que viesse a demonstrar a peculiaridade de tal intenção épica em Dobal, restringindo-se a afirmar, na página vinte e um(21) da referida edição que o poema “Leonardo foge à técnica da epopéia tradicional, guardando do gênero épico o fato de narrar os feitos de um herói, o herói piauiense, Leonardo, na luta pela independência nacional”. Esta afirmação, não obstante, aponta-nos um dos caracteres do épico ortodoxo preservados por Hindemburgo (tendo em vista que o heroísmo como característica épica é uma categoria eminentemente ortodoxa e está invalidado, em Dobal, por sua condição estrutural maniqueísta[5]) sem nos indicar qual aspecto substantivo do gênero foi transgredido.
Subjacente a esta discussão está a bipartição entre a epopéia ortodoxa vs heterodoxa. O gênero épico, enquanto conceituação ortodoxa fora solapado por empresas que impuseram a ductilização dos caracteres de sua definição, sobretudo quanto ao aspecto da linearidade sintática e discursiva. Desde Mallarmé (Igitur e Un Coup de Dés Jamais n’Abolira le Hasard), T.S. Eliot (The Waste Land e The Hollow Men) e Pound (The Cantos), qualificar um poema como epopéia implica em formular uma base conceitual capaz de englobar a envergadura transgressiva destas obras. O argumento acidental de Reis aplicava-se a explicação do lírico em Dobal, ignorando que este mesmo caractere lírico fosse na verdade um requisito épico ortodoxo.
“um aspecto que chama a atenção na arte do poeta piauiense é a técnica de conduzir o pessoal de maneira sempre impessoal, é a presença do eu lírico, disfarçado na terceira pessoa, é o emprego do indefinido pelo definido, do objetivo pelo subjetivo que deixam na poesia a ausente presença do autor. Este recurso nascido em O Tempo Conseqüente, continua em toda a obra de H. Dobal.”
Poderíamos, a partir deste excerto, coadunar o épico dobalino à rígida conceituação de Emil Staiger[6] — Conceitos Fundamentais da Poética — o qual afirma que o narrador épico é um apresentador representante de um ethos; narrador que embora não se imiscua nos acontecimentos, mantendo-se objetivo, distancia-se sem desaparecer atrás da história, ou melhor, sem tornar-se ausente. Ora, segundo Staiger, esta presença ausente, a qual se refere Reis, é característica fundamental do narrador-apresentador épico. E se concordamos que tal presença ausente se espraia por toda a poesia dobalina, então corroboramos a hipótese da função épica fragmentada em faturas líricas, ou melhor, fraturas líricas.
A intuição de Odylo Costa, por outro lado, qualificando ecumênica a poesia dobalina, estava correta porque reconheceu o caráter universal do particularismo cultural ali representado. Ora, a preferência de Dobal pelo mundo ordinário e rústico em consonância com a tradição da cultura de seu povo e seus homens de cada dia, reafirma a tese de que a poesia dobalina tem por substrato e acentuação uma função épica. Digo função porque seria equivocado considerá-la épica enquanto gênero, por uma questão de rigor no uso do conceito. Uma épica que varia seus humores a fim de representar todas as facetas do espírito de um povo, seja pelo drama da escassez em O Tempo Conseqüente, seja pelo testemunho crônico-anedótico dos causos e da gente comum em A Serra das Confusões. Varia o humor, a função épica é constante. A respeito desta predileção pelo ordinário Staiger afirma:
“o homem épico vive exclusivamente a vida de cada dia [...] A epopéia [...] tem seu lugar determinado na história. O poeta aqui não fica sozinho. Está num círculo de ouvintes e lhes conta suas histórias [...] Os ouvintes reconhecem Homero porque este representa as coisas como eles próprios estão acostumados a ver.”
A ala institucional da crítica, por sua vez, abraçou o poeta e fê-lo a seu modo, ainda que sob custo de distorcer-lhe a força antilírica. Para tanto puseram-no sob o jugo de universalismos conceituais omissos à singularidade da literatura brasileira. A poesia nacional há muito adquiriu autonomia e tradição para ser tratada idiograficamente, e não simplesmente estar subsumida no rótulo de poesia portuguesa, como impõe M.Paulo Nunes ao citar Unamuno como referencial teórico para leitura da estética de Dobal. A hipótese da semi-restrição temática (amor/elegia) não confere nenhuma singularidade à poesia dobalina,não a diferencia de modo a torná-la distinguível como manifestação poética de uma cultura, pelo contrário, a reduz a um leque de conceitos alheios à autonomia literária brasileira. Nunes não nos fornece o instrumental necessário e coadunável para o estudo da poesia de Hindemburgo Dobal uma vez que, para a análise específica do caso, usar Unamuno seria uma hipótese ad hoc, ao que Thomas Khun denominou inversão dos papéis epistemológicos: ao invés do teórico reconhecer a demonstrada insuficiência de seu aparato conceitual em relação ao objeto e admitir refutada sua empresa, prefere distorcer a percepção do objeto para que este caiba exato em seu arcabouço.
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