- Publicado originalmente em amálgama #4, agosto de 2003.
O SAGRADO CAMINHO
por Sérgio Batista
A velha mão, sobre a mesa rude, rumina seus gestos, sua trajetória, sentindo a pele opaca, inelástica. Os dedos tamborilando, aflitos, como a recontar as omissões que não dão trégua. No dorso, veias saltadas, expostas, impregnadas de um sangue ralo e frio arrastando-se em um vermelho morto. Na palma vazia, as linhas tortuosas e confusas de uma vida fútil, desperdiçada, perdida. Sob as unhas crescidas, o desleixo.
De súbito, um murro violento fere a cena. A pobre mesa estremece. Do outro lado do móvel, imóvel, sobre a superfície áspera da madeira, a determinada e laboriosa formiga espera, paciente, serena, pelo término do tremor. Diligente, logo que pode segue seu caminho. Leva consigo um peso verde – a cor da vida! - que ultrapassa em muito o de seu pequeno e frágil corpo. Diante do membro inerte pára e aguarda. Não sabe o risco que corre.
A mão, trêmula e ébria, ergue-se repentina, mas se faz pedra em pleno ar, congelada pela vergonha, pelo nojo de si mesma. Apenas inveja a dignidade que passa, inocente, inconsciente de sua majestade.
À moribunda, resta agarrar-se novamente ao copo. Ao inseto resoluto, cabe prosseguir seu caminho perene, sagrado caminho de formiga.
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