amálgama #4 - Mestres do Passado?



- Publicado originalmente em amálgama #4, agosto de 2003.


MESTRES DO PASSADO?
por Wanderson Lima


O positivismo comteano consolidou a visão da história como progresso contínuo, como constante aprimoramento do pensar e do fazer humano. Mutatis mutandis, essa visão escatológica, redentora do pensamento positivo está presente também no marxismo: aqui, não a ciência mas a revolução libertaria o homem das “trevas” da sociedade burguesa capitalista e o conduziria às “luzes” da sociedade comunista. Tal apologia do progresso que permeia estas duas “religiões” seculares levou muita gente a aplicar a falácia da evolução contínua até mesmo no campo da arte. Assim, os artistas do passado, a exceção de gênios como Shakespeare e Dante, seriam necessariamente menos evoluídos.

Este equívoco – associar o passado a atraso, a ingenuidade, a pré-maturidade – nos custou e nos custa muito. Um dos sintomas desse engano é julgarmos os “mestres do passado” segundo valores – éticos, estéticos etc – do hoje. Por exemplo: diante da robustez de uma obra como a de Da Costa e Silva, valorizar-se apenas meia dúzia de textos que, supostamente, seriam prenúncio da Antrofagia oswaldiana (no caso, o soneto À Margem de um Pergaminho) ou do Concretismo (os poemas figurativos em forma de losango). Salva-se,neste caso, um navio e perde-se a frota.

Da Costa e Silva, aliás, é um navio muito maltratado nos mares da literatura piauiense. Há, por um lado, os que, como descrevemos acima, querem fazer dele um proto-vanguardista por conta de meia dúzia de poemas. Por outro lado, há as críticas de orientação biográfica e/ou impressionista, oriunda mormente dos meios acadêmicos, que querem fazer desse virtuose do verso, desse mestre da melopéia um reles “poeta da saudade”, um diluidor de um romantismo confessional e auto-piedoso. O reacionarismo saudosista desses críticos divulga e populariza, da obra dacostiana, o viés bairrista-personalista, cuja peça máxime é o soneto “Amarante”. Ora, o que Da Costa deve aos românticos é, em essência, o desejo de fazer boa literatura sem se desvincular das raízes populares. Vale-se, para tanto, de um temário essencialmente popular e mesmo telúrico, porém o submete às “exigências de uma aristocracia estética”, como bem frisou o crítico Fausto Cunha. Daí porque poemas como “O Aboio”, “A Balsa”, “A Moenda” e muitos outros impregnaram a memória popular e, ao mesmo tempo, foram inseridos por diversos críticos entre os grandes sonetos que já se produziu em língua portuguesa. E, mesmo aceitando a prerrogativa do débito a um certo Romantismo, duvidamos que o sentimentalismo e a assunção da sensibilidade de extração popular garantam por si só, a qualquer poeta de qualquer período literário, o acabamento formal de versos como estes:

(...)
“Fluindo dos ventrículos à artéria,
Refluindo da artéria para a veia.
(...)
Mar Vermelho sutil de ondas estuosas
(...)
Florindo em cravos, amarantos,rosas...”



Ou como estes:

“A concha cérula
De norte a sul,
Tem tons de pérola
No lindo azul”.

Ou ainda estes:

“Faz do fluido que flui das entranhas a estranha
e fina trama ideal de seda que a rodeia (...)”.


Urge, pois, que realizemos uma nova leitura da obra dacostiana. Uma leitura que o faça um autor atual, instigante; que não mistifique uma obra que,admitamos, apresenta altos e baixos; que não caia descritivismo inócuo; que não seja eivada de pré-conceitos, concebendo a modernidade como o ápice em excelência estética em relação a outras épocas . Neste sentido, o esforço crítico de Cunha e Silva Filho em sua dissertação de mestrado que virou livro – “Da Costa e Silva : Uma Leitura da Saudade”, 1996 – não foi suficiente para promover essa nova leitura. Não obstante alguns pontos positivos – por exemplo vasculhar as relações intertextuais em Da Costa e traçar um paralelo entre este e Manuel Bandeira –, na maior parte do livro Cunha e Silva contenta-se em catalogar em três categorias ( ‘anoranza’,’nostalgia’ e ‘arela’) a saudade expressa no poemas de Da Costa e Silva. Este esforço taxonômico, que pôs em segundo plano uma leitura imanente dos poemas, pouco ou nada serviu para alargar as interpretações já conhecidas da poesia dacostiana.


O mais fértil estudo da obra do amarantino, no sentido de dar-lhe um novo rumo de leitura, parece ser o ensaio de Oswaldino Marques (“O espelho do mundo: Refracções”), que, por sinal, não recebeu a devida atenção dos literatos piauienses. A despeito da ortodoxia formalista e de certos arroubos impressionistas, o texto de Oswaldino ,além de nos dá uma idéia precisa da mestria do poeta de Sangue, propõe-nos a fértil idéia de lermos o autor como o primeiro poeta impressionista de nossas letras. Tal proposta – infelizmente ele só propôs, não levou adiante – não é, como podem pensar alguns precipitados, mera mudança de “escola” literária; é possivelmente um horizonte que nos permitiria entender sem amolgar certas sutilezas da poética dacostiana, tais como a sensibilidade incomum ao retratar o cromatismo da natureza, o gosto pela produção de poemas em série sobre um mesmo tema ou sobre temas correlatos, o ouvido fino em captar com minúcias a multiplicidade de sons da natureza,a presença de um olho exterior pouco comum em seus coetâneos simbolistas, o primado do instante em contraposição ao eterno em boa parte dos poemas, e mais. O desafio, lanço-o Oswaldino; nenhum de nós, no entanto, até agora, o aceitou.

Autores da estirpe de um Da costa e Silva, um Cruz e Sousa, um Gonçalves Dias não devem ser lidos simplesmente como “mestres do passado”, veículos de concepções estéticas “do passado”. A lição deles é perene. Se não o vemos como “mestres de sempre”[1] é porque possivelmente fomos iludidos pela ideologia do progresso: aprendemos a ver a história como um processo linear, que marcha rumo a um final redentor, e engendramos uma concepção de progresso formal que nos fez crer na falácia da existência de uma arte atual, vanguardista e outra inatual e, portanto, fora de interesse.


nota
[1] Não queremos dizer com isso que tudo na obra de Da Costa e Silva, Cruz e Sousa e Gonçalves Dias seja imorredouro. De fato, nenhuma obra, por conta do contexto em que foi escrita e da maior ou menor adesão aos modismos, mantém vivos todos os seus “órgãos”, assim como nenhuma, por medíocre que seja, pode ser considerada completamente morta, dado que mesmo sem valor para história da arte, ela, no entanto, pode ser bem quista para a sociologia da arte.



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Wanderson Lima nasceu na cidade de Valença do Piauí (PI) em outubro de 1975.
É autor de Morfologia da Noite (poemas, 2001),
Balé de Pedra (poemas, Fundac, 2005)
e Reecantamento do Mundo (ensaios, com Alfredo Werney, amálgama, 2008).

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