amálgama #4 - "Incultos versos, ó Leitor, te ofereço"

- Publicado originalmente em amálgama #4, agosto de 2003.



“Incultos versos, ó Leitor, te ofereço”
por Adriano Lobão Aragão




Incultos versos, ó Leitor, te ofereço
Prole de um Vate, que há três anos voa
Pelos imensos, Helicônios ares.”


(Últimos versos da Dedicatória de Poemas,
primeira obra de Ovídio Saraiva,
publicada pela Universidade de Coimbra em 1808.)





Em 1759, tomava posse o primeiro governador da Capitania de São José do Piauí, João Pereira Caldas, embora ainda continuasse dependente do Maranhão, situação que só iria mudar em 1811, podendo então se entender diretamente com a metrópole. Constituindo um escasso contingente humano, não havia pessoas aptas a desempenhar as diversas funções vitais para organização administrativa da província. A educação escolar continuava praticamente inexistente e o poder público buscava sobreviver entre os desmandos dos fazendeiros que dominavam a região. Próximo ao litoral, encontramos a Vila de São João da Parnaíba, que segundo o ouvidor geral dr. Antonio José de Morais Durão, tinha, em 1774, uma população de 2.694 pessoas, distribuídas em 444 fogos, residências familiares, 79 fazendas e 500 sítios. Nasceria nessa vila, em 1787, o poeta Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, filho de Antônio Saraiva de Carvalho e Margarida Rosa da Silva.

O analfabetismo era generalizado e às famílias abastadas só cabia enviar seus filhos aos maiores centros ou valer-se da figura do mestre-escola negro, alforriado e proveniente da Bahia, para ensinar-lhe as primeiras letras, pois não havia ensino regular. Dessa maneira, Ovídio Saraiva permaneceria somente seis anos no Piauí, sendo enviado pelos pais, em 1793, para iniciar seus estudos em Portugal. Em seu Soneto LXII, faz referência a seu exílio.


Soneto LXII

Passaram lustros três, e mais três anos,
Que à Estância dos mortais volvi do nada;
Mas bem que inda não seja adiantada
Minha idade, sofrido hei já mil danos:

Além dos torvos mares desumanos,
Recebi dos meus Pais a vida ervada,
E contando anos seis, à Pátria amada,
Arrancaram-me os Pais com vis enganos:

Desde então me arrepela a voz maldita,
Da desgraça letal o braço forte,
E sobre tetos meus o Mocho grita;

E se não me enganei nos Céus... ó sorte!
Esta sentença li, com sangue escrita,
“Em breve lutarás com a torva morte.”

(Poemas, 1808)


E contando anos seis”, Ovídio foi enviado pelos pais a Portugal. Os versos declarando que, longe da remota vila no Piauí, o destino anunciado pelo Mocho, ave de rapina noturna menor que a coruja, seria morrer é mais reflexo de uma temática constante em seus versos que sentimento telúrico. Na realidade, o exílio foi determinante para sua vida, e não para a morte, pois em 1805 estava matriculando-se no curso de Direito da Universidade de Coimbra. Ovídio dedicaria seu primeiro livro, Poemas, ao vice-reitor Manoel Paes de Aragão Trigoso. Encontramos os seguintes versos em sua homenagem no poema-dedicatória que abre o livro:

Um Mecenas portanto, em ti procuro,
Trigoso Benfeitor dos Céus, (...)
(...) farei teu nome,
Sobre as plumas de um Estro arrebatado,
Soar de Céu em Céus, de mundo em mundos.

(...)


Poemas foi publicado na Imprensa da Universidade de Coimbra em 1808, mesmo ano em que Dom João VI transfere-se com a corte portuguesa para o Brasil em virtude do cerco de Napoleão. Ovídio fez parte do batalhão acadêmico organizado por ocasião da invasão francesa. Concluiria seu curso em 1811. No ano seguinte, é nomeado juiz na cidade de Mariana, Minas Gerais, e entre 1816 e 1819, em Nossa Senhora do Desterro, Santa Catarina. Embora sua poesia seja por muitos considerada Neoclássica, a formação literária de Ovídio, realizada em Portugal, possui uma nítida tendência pré-romântica expressa, po exemplo, em seu anseio pela morte, tendo uma declarada influência de Bocage.

Ovídio Saraiva chegou a ser desembargador da relação do Rio Grande do Sul. Em 1821, foi eleito representante do Piauí junto às cortes constitucionais de Lisboa, mas residia no Rio de Janeiro e, ao que parece, estava mais interessado nas tendências separatistas do Sul que em sua “pobre aldeia sem cultura”, renunciando ao mandato, assumido pelo suplente, padre Domingos da Conceição, que muito lutou pela educação no Piauí, embora quase nunca tenha conseguindo êxito em suas reivindicações. A situação pedagógica na província continuava deplorável, na qual temos descrições dessa realidade nos escritos de padre Domingos:

Setenta mil portugueses, cidadãos pacíficos do Piauí, são setenta mil cegos que desejam a luz da instrução pública para que tem concorrido com seus irmãos de ambos os hemisférios, pagando o subsídio literário, de sua origem e apenas conhecem três escolas de primeiras letras na distância de sessenta léguas cada uma, estas incertas, e quase sempre vagas por não haver na província quem queira submeter-se ao peso da educação da mocidade pela triste quantia de sessenta mil réis anuais quando a um feitor de escravos, tendo cama e mesa, se arbitra a quantia de 200$000.
(...)
E como desgraçadamente na província do Piauí não haja pessoas idôneas que possam e queiram encarregar-se destes magistérios, devem por-se em concurso nesta capital (Lisboa) preferindo-se em iguais merecimentos presbíteros, assim seculares, como egressos, por haver grande falta de acertos na província
”.


Eram nessas cortes de Lisboa que o deputado baiano Cipriano Barata defendia abertamente a independência do Brasil.

Pouco depois temos a proclamação da Independência e as lutas no Piauí em prol da libertação, nas quais não se registra o posicionamento de Ovídio. Como advogado, no Rio de Janeiro, em 1825 defendeu o patriota republicano Ratcliff, envolvido na Confederação do Equador.

Uma vez estabelecida a independência, temos a busca dos valores nacionais que tanto caracterizou a 1.ª Geração da poesia romântica brasileira. A abdicação de Dom Pedro I, em 1831, marca o primeiro hino nacional brasileiro, Ao Grande e Heróico 7 de Abril de 1831, de Ovídio Saraiva e música de Francisco Manuel da Silva. Este hino foi executado quando Dom Pedro I, após abdicar ao trono brasileiro em favor de seu filho, então com 5 anos, deixou o Brasil, indo assumir a coroa portuguesa. No entanto, pela sua duvidosa qualidade, o hino acabou substituído 10 anos depois, ironicamente por um de valor literário mais duvidoso ainda, do qual só registramos a utilização do mesmo refrão. Somente em 1922, no centenário da Independência, temos a letra atual, escrita por Osório Duque Estrada.

No hino de Ovídio, os portugueses, tão venerados em seu livro, Poemas, são agora tidos por “monstros”. Além disso, menciona preconceituosamente o sangue judaico e mouro, gerador de “homens bárbaros”. Segundo Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, os portugueses seriam, dentre os povos europeus, os mais indefinidos entre África e Europa, devido aos anos de dominação árabe na Península Ibérica e da contribuição judia, povo que possui a extraordinária capacidade de aclimatação em diferentes regiões do planeta, o que muito deve ter ajudado a suportar as dificuldades de suas diásporas. Seria esse sangue mestiço de judeus, europeus e árabes o elemento que propiciou a fixação dos portugueses no Brasil, embora eles mesmos demonstrassem preconceito contra judeus e árabes. O grito de liberdade pode ser remetido ao episódio de D. Pedro I às margens do rio Ipiranga proclamando a independência. Só que, desatando-se desde o rio Amazonas até o rio Prata, o hino faz homenagem à data de abdicação de D. Pedro I em favor de seu filho, D. Pedro II. A independência, sob o reinado de D. Pedro I, não é tratada como sinônimo de liberdade, o qual se contrapõe ao atual hino, onde após o Grito do Ipiranga, “o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria”. D. Pedro II é anunciado como um futuro monarca realmente brasileiro, após “uma prudente regência”. Dessa maneira, fica patente que o reinado de D. Pedro I era visto como um prolongamento da dominação portuguesa, em transição para a “independência verdadeira”. D. Pedro I, após a abdicação, assumiu o trono de Portugal.

Observa-se que as características básicas do Romantismo brasileiro já se encontram no hino de Ovídio Saraiva: o nacionalismo, a presença da natureza (“desde o Amazonas até o Prata”), o exagero e até mesmo traços da poesia social abolicionista que caracterizaria a 3.ª Geração romântica, apesar das contradições com a realidade. “Neste solo não viceja / O tronco da escravidão”, escreveria Ovídio, embora a escravidão negra continuasse sendo a mão-de-obra fundamental do Império, como era na Colônia. A “melhor lição” dada pelo Brasil foi ser uma das últimas nações americanas a abolir a escravidão, em 1888. De qualquer forma, essas contradições e exageros, principalmente ufanistas, também são expressões do Romantismo, por isso temos um céu com mais estrelas, uma Iracema que corre mais que a ema selvagem e um Peri que arranca palmeiras do chão, como vemos em Gonçalves Dias e José de Alencar. Tradicionalmente, aponta-se como marco inicial do Romantismo o livro Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1836, cinco anos depois do hino de Ovídio. É claro que não se trata de nenhuma obra-prima, aliás, faltam maiores qualidades literárias ao hino e seus demais escritos, mas mesmo Bento Teixeira, precursor do Barroco no Brasil, com Prosopopéia, e o próprio Gonçalves de Magalhães, também nunca foram grandes artistas.

Quanto ao livro Poemas, não constitui um grande momento da literatura nacional, nem expressão de valores piauienses, sobretudo pelas condições culturais, sociais e políticas da província na época e do poeta ter tido uma formação cultural lusitana. Seu livro encontra influências na literatura portuguesa, notadamente Bocage, que Ovídio adotou como modelo poético. Da mesma maneira que o poeta português oscila entre o Neoclassicismo e um Pré-Romantismo, os poemas de Ovídio também buscam essa mesma tendência, embora lamentavelmente impregnados de plágio e diluições. Somente em 1825 o Romantismo iria surgir em Portugal, através de Almeida Garrett, com seu poema Camões, embora já existisse desde o século XVIII, na Alemanha e na Inglaterra. De qualquer forma, Bocage e seus seguidores enquadram-se num período em que a poesia portuguesa estava em transição para o Romantismo, resultando daí esse Pré-Romantismo, onde alguns valores do Arcadismo coexistem com aspectos românticos, como a morbidez configurada na morte, no desejo de morrer, no ambiente noturno e na angústia, mesmo que sendo convencionalismo e fingimento poético. Inserido nesse contexto, temos a poesia de Ovídio. O contato do Romantismo português com o Classicismo, uma das matrizes do Neoclassicismo árcade, é tanto que foi introduzido com um poema sobre Camões, o grande poeta clássico português. Esse ambiente repleto de valores clássicos que continuariam no Romantismo já se encontravam presentes nos versos de Bocage, e por conseqüência em Ovídio, pois eram padrões que a própria literatura portuguesa não se libertou nem mesmo com o Modernismo, com Fernando Pessoa, seu heterônimo Ricardo Reis, e seus contemporâneos. O Romantismo português baseou-se num abandono das convenções árcades, principalmente a imitação aos antigos gregos e romanos e a Petrarca, mas não significou ruptura com nenhum padrão pré-existente, principalmente temáticos. Nacionalismo já era uma questão literária forte desde Os Lusíadas, de Camões.

Almeida Garrett inúmeras vezes retoma Camões, assim como os árcades retomavam Virgílio e Horácio. Camilo Castelo Branco, reescreve na sua novela passional Amor de Perdição, a tragédia de Romeu e Julieta, que William Shakespeare trouxe, provavelmente de forma indireta, do conto de Matteo Bandello, escritor italiano contemporâneo de Boccaccio, de menor projeção e estilo, que por sua vez retoma o mito greco-romano de Píramo e Tisbe, também aproveitado por Shakespeare na comédia Sonho de uma Noite de Verão.

O fascínio de Ovídio por Bocage dominava sua obra. No poema Nênia, à nunca assaz pranteada morte de M.M.B. du Bocage, incluída em Poemas, temos os seguintes versos que demonstram claramente a condição de imitador de Bocage: “Em minha frase já não tenho, ó morte, / Como Elmano um autor, que alheias frases / Modifique, e transforme, e mude, e ajuste.”. Nesse sentido, podemos observar a confirmação desses versos comparando o soneto Apenas Vi do Dia a Luz Brilhante, de Bocage, com o Soneto I, de Ovídio Saraiva. O segundo quarteto de Bocage também apresenta semelhanças com o Soneto LXII, já mencionado, de Ovídio.

Apenas vi do dia a luz brilhante
Bocage

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá de Tubal no empório celebrado,
Em sangüíneo caráter foi marcado
Pelos destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e enfim meu fado
Dos irmãos, e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da pátria, longe da ventura
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.



Soneto I
Ovídio Saraiva

Apenas tristes, os meus olhos viram
O rútilo esplendor do Sol dourado,
Prenhes de raios, por meu negro Fado,
Nuvens os altos Céus logo cobriram;

Do Báratro os portões logo se abriram
À Brônzea chave de Plutão raivado;
E de pálidas fúrias bando alado
Rebentou sobre mim; males surgiram:

No palustro d’aflição Dragão imigo
Azeda os dias meus; mais me amargura
Negra lembrança de futuro p’rigo:

Oh! se tão brônzeo Fado assim atura,
Antes, antes, Ó Campa, o teu abrigo;
Antes a noite sempiterna, escura.



Na época de Ovídio Saraiva, o Brasil vivia o período de transição da Era Colonial, encerrada com os árcades, para a Era Nacional, iniciada pelos românticos. O intervalo compreendido entre as duas eras inicia-se com a transferência da família real portuguesa para o Brasil em 1808, mesmo ano de Poemas, até a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, Gonçalves de Magalhães; ou (por que não?) até o hino de Ovídio. Esse período de transição compreende a vinda da família real portuguesa ao Brasil, elevando-o assim a reino unido. Temos a vinda da missão cultural francesa, o jornalismo político de Evaristo da Veiga, Hipólito da Costa e Januário Barbosa da Cunha e a poesia didática e moralizante do padre Sousa Caldas e de Américo Elísio, pseudônimo de José Bonifácio de Andrada e Silva. Bonifácio possui características semelhantes a Ovídio, pois ao mesmo tempo em que tende para o Romantismo, ainda não consegue abandonar as convenções neoclássicas.

Ovídio morreria a 11 de janeiro de 1852, na Vila de Piraí, na província do Rio de Janeiro. Em 1989, a Universidade Federal do Piauí, UFPI, publica a segunda edição de sua obra Poemas, a partir de cópia enviada da Biblioteca Nacional de Lisboa pelo então embaixador Alberto da Costa e Silva, filho do poeta piauiense Da Costa e Silva. Não se trata, repetimos, de uma obra que mereça grande atenção crítica, mas para compreender nossa cultura literária, é preciso rever suas raízes, mesmo que tão presas aos moldes portugueses, à pobreza e ao abandono. Os demais escritos de Ovídio permanecem sem uma segunda edição ou qualquer comentário relevante.



Ao Grande e Heróico 7 de Abril de 1831

[Ovídio Saraiva]

Os bronzes da tirania
Já no Brasil não rouquejam
Os monstros que os escravizam
Já entre nós não vicejam.

Da Pátria o grito
Eis se desata
Desde o Amazonas
Até o Prata.

Ferro e grilhões e forcas
De antemão se preparavam:
Mil planos de proscrição
As mãos dos monstros gizavam.

Da Pátria o grito...

Amanheceu finalmente
A liberdade no Brasil...
Ah! não desça à sepultura
O dia Sete de Abril.

Da Pátria o grito...


Este dia portentoso
Dos dias seja o primeiro
Chamemos Rio de Abril
O que é Rio de Janeiro.

Da Pátria o grito...

Arranquem-se aos nossos filhos
Nomes e idéias dos lusos
Monstros que sempre em traições
Nos envolveram, confusos.

Da Pátria o grito...

Ingratos à bizarria
Invejosos de talento,
Nossas virtudes, nosso ouro,
Foi seu diário alimento.

Da Pátria o grito...

Homens bárbaros, gerados
De sangue judaico e mouro,
Desenganai-vos, a Pátria
Já não é vosso tesouro.

Da Pátria o grito...

Neste solo não viceja
O tronco da escravidão
A quarta parte do mundo
Às três dá melhor lição.

Da Pátria o grito...

Avante, honrados patrícios,
Não há momento a perder
Se já tendes muito feito
Idem mais resta a fazer.

Da Pátria o grito...

Uma prudente regência
Um monarca brasileiro
Nos prometiam venturosos
O porvir mais lisonjeiro.

Da Pátria o grito...

E vós donzelas brasileiras
Chegando de mães ao Estado
Dai ao Brasil tão bons filhos
Como vossas mães têm dado.

Da Pátria o grito...

Novas gerações sustentam
Do povo a soberania
Seja isto a divisa delas
Como foi de abril um dia.

Da Pátria o grito
Eis se desata
Desde o Amazonas
Até o Prata.

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