Publicado originalmente em amálgama #1, janeiro de 2002
1973. Era um ano marcante para a poesia marginal. Buscava-se sobreviver aos anos de chumbo do regime militar, ao suicídio de Torquato Neto e aos resquícios da aventura tropicalista. Waly Salomão, ainda Sailormoon, que já havia publicado seu livro de poemas Me segura qu’eu vou dar um troço, organizava a obra de Torquato sob o título Os últimos dias de Paupéria. Gramiro de Matos fazia suas experiências lingüísticas (“tupinglês”, “sertanês baianês”...) enquanto “Os morcegos estão comendo os mamões maduros”, e a revista Navilouca, coordenada por Torquato e Waly, anunciava que “Sailormoon está dando um troço” e aglutinava o desbunde de uma geração marcada pela contracultura, onde se tinha de Jorge Mautner (do lado de dentro) a Lou Reed (do lado de fora, com seu fenomenal disco “Transformer”, produzido por David Bowie). E muitos brasileiros também viviam no lado de fora, no exílio, longe dos nossos generais, perto de outras guerras. Os tempos eram esses.
1943. No meio de outra guerra (sempre há guerras), nasceu em Jequié, na Bahia, um menino que quis se chamar Waly Sailormoon, e além do troço, também foi “Gigolô de Bibelôs”, “Algaravias”, “Lábia”, “Tarifa de Embarque” e “Armarinho de Miudezas”.
2001/ 06 de novembro. E como a Universidade Estadual do Piauí – UESPI, Clube dos Diários e Teatro 4 de Setembro dedicam uma semana em homenagem a Torquato Neto, temos uma exposição de fotos, palestras e apresentações. Dagoberto Carvalho Jr., notório estudioso de Eça de Queirós, radicado no Recife, gastou uma manhã inteira fazendo comparações entre Torquato e Eça de Queirós, e falando, falando muito em Eça, não se sabendo bem qual tese defendia ou se buscava simplesmente não falar em Torquato. Mas esperar o que de quem fez questão de iniciar a tal “palestra” afirmando não ter o livro de Torquato? Pouco antes, perguntava para a coordenadora do curso de Letras/Português da UESPI, Dorinha, se a coleção completa de Eça de Queirós que ele havia doado à biblioteca estava sendo bem consultada pelos universitários. Enquanto isso, o senhor Heli, pai de Torquato Neto, presente na ocasião, deve ter percebido que a maior semelhança entre Eça de Queirós e Torquato Neto chama-se Dagoberto Carvalho Jr. Ou não?
1971/ 21 de dezembro. “josé alvaro editor quer lançar uma coleção chamada na corda bamba, com transas de ‘underground” etc. capinam transou esta muito bem e waly mais eu, se continuarmos andando e podendo, também publicaremos um livro logo de saída. o de waly é aquele mesmo, modificado por questões de custo. o meu, estou tentando organizar agora, chama-se do lado de dentro e a base é mesmo a geléia geral, mais coisas antigas, coisas dos sanatórios e muito pouca coisa escrita só para o livro, mas mesmo assim, alguma. vamos ver. essa nova transa, a de liquidarem assim sumariamente a flor, tem conotações negríssimas, e de repente, na transa geral daqui de dentro. foi-se a flor e agora? por enquanto fica só nisso mesmo. depois,conforme for. veremos. veremos.”
(Trecho de carta de Torquato Neto
para Hélio Oiticica, in Os Últimos
Dias de Paupéria, 2.ª edição)
2001 / 9 de novembro, 9h. Trouxeram Waly Salomão para falar na UESPI sobre os bastidores do Tropicalismo. Após rápido impasse sobre onde Waly Salomão iria palestrar, ficou decidido o Laboratório de Artes Torquato Neto. Bem propício. Tinha até a equipe técnica da peça Soy Loco por Ti, a ser apresentada após o falatório, martelando o palco atrás das cortinas. Esse “acompanhamento sonoro”, aliás, foi o único bastidor a que Waly fez referência. Entre suas “gentilezas”, não respondeu a nenhuma pergunta, “não respondi, nem vou responder”, bradava ao final, após o revoltado protesto do poeta Zé da Cruz. Observou que nosso centro artesanal é uma câmara de horrores numa cidade repleta de obras macaqueadas de Miami. Seu conselho para os jovens poetas: “saiam do Piauí”. O pesquisador Kenard Kruel até que tentou manifestar seu desejo de ter Waly como “embaixador” do Piauí junto à viúva de Torquato, Ana Maria, detentora dos direitos autorais de sua obra, mas foi publicamente repudiado de maneira cínica. “Aquela menina ali já me chamou de professor, você me chamou de embaixador, mas eu me nomeio é censor”, ironizava Waly, tomando-lhe a palavra. “Eu já mostrei teu livro pra platéia, fiz propaganda antes de você chegar aqui. É mentira, gente?” Alguém esperava algo mais?
2001 / 9 de novembro, 20h. Tivemos a Roda de Poesia e Tambores, organizada pelo contra-lei Elio Ferreira. Waly havia anunciado pela manhã que estaria presente, declamando poemas seus, de Torquato Neto e de Gregório de Matos. Mas não declamou coisa alguma. Aliás, desapareceu após o poeta Chico Castro subir ao palco para ler seu manifesto contra os “troços” que Waly havia dado pela manhã na UESPI. Um ponto básico foi Waly dizer que o Piauí só tinha Torquato Neto e Mário Faustino. De qualquer forma, é preciso respeitar a ignorância de quem não conhece Da Costa e Silva, Martins Napoleão e H. Dobal, para citar alguns e somente poetas. Como não havia mais Waly, sobraram vaias para Kenard Kruel, que inventou de falar nas disputas políticas entre Mão Santa e Hugo Napoleão para um público que gritava: “Poesia!”. O ator Francisco Pellé, que dirigia o Teatro 4 de Setembro, esclareceu ao público o quanto gastou-se para Waly vir soltar a lábia em Teresina. Um sujeito que tanto já viveu, da poesia marginal dos anos 70 até a “Lábia” de hoje, poderia ter mais a oferecer. No mínimo sair do senso comum e das provocações dispensáveis. Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, João Cabral de Melo Neto declarou: “Eu acho que certas coisas precisam ser levadas a sério. (...) Em 1945, eu fui convidado a participar do Congresso Brasileiro de Poesia em São Paulo. Achei que precisava escrever uma tese, e assim fiz. Deve ter sido a única. As pessoas foram lá participar do encontro de mãos vazias.” Waly, é claro, não é nenhum acadêmico, mas isso não justifica suas mãos vazias. Se veio pra brincar era melhor ter vindo durante a Micarina. Paciência. Os tempos são esses.
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